Abel Neves: o dramaturgo poeta – autor da próxima produção do Teatro das Beiras

O ritmo, a cadência e a toada da poesia estão presentes em tudo o que faz. Mesmo que os versos não sejam a maioria dos seus escritos. “Tenho a sensação física de estar mais perto da poesia”, afirma Abel Neves, 54 anos, dramaturgo, autor de mais de 40 peças de teatro, entre as quais esta Visita.
Aliás, quando começou a escrever teatro, fê-lo pensando na poesia. As primeiras obras para A Comuna Serena Guerrilha (1981), Não fui eu… Foram eles (1982), Pó de Palco (1985), entre outras tinham uma forte carga poética, longe “das coisas rasteiras da vida”. Mas com as “reviravoltas do tempo”, foi percebendo que, afinal, as coisas pequeninas também podiam ser poema e hoje lança-se a cada nova peça com um desafio: “Fazer com que o público esteja no teatro e na poesia ao mesmo tempo”. E é o público que sempre o preocupa “Sem ele não há teatro”, daí que sinta como ‘missão’ criar um objecto para os outros e não para o próprio umbigo.
Um texto pode nascer do nada. Uma palavra, que despreocupadamente aponta num caderno, uma conjugação de frases que o levem a escrever outras. Nos romances, contrariamente aos textos para teatro, sente que pode “andar em regime de estuário, num rio cheio de tensões”. Porque, para Abel Neves, a literatura só faz sentido se for tensa. Num caso ou noutro, tudo dependerá das personagens que convocar para os seus passeios adora caminhar, e muitas vezes, a cada passo, a escrita vai surgindo. “Julgo que a criação de uma personagem tem muito de fotográfico, no sentido de revelação. Só que, às vezes, fica tudo preto”, diz, entre risos.
Sem luxos, vive da escrita mas não é compulsiva “É a minha vida”. Mas não é compulsivo. Gosta de descobrir as palavras certas devagar, sem pressas, saboreando. Revê e rescreve imenso, num trabalho de composição onde se detém horas sem fim. Não gosta de trabalhar em mais do que uma coisa ao mesmo tempo. E, apesar de não ser fácil, tem tido sempre o que escrever. “Nunca estou parado. Se não tenho nenhum projecto teatral entre mãos, viro-me para os meus romances “, refere. No momento em que acaba um texto e ainda não começou outro, sente-se “a atravessar os anéis de Saturno”. É sobretudo um período de procura. Precisa de descobrir se aquele tema vai, de facto, preencher a sua vida. Só assim valerá a pena.

Nascido em 1956, em Montalegre, num dia de nevão de Primavera, Abel Neves passou ali a primeira infância, na companhia dos pais e das duas irmãs mais velhas. Ainda hoje tem família naquela vila transmontana. Lembrase de adorar brincar com fisgas e de construir verdadeiros trenós, com uma tábua de madeira, com uma barra de sabão por baixo. Quando nevava, deslizava a velocidades estonteantes numa certa ruazinha inclinada para onde ia com os amigos, com quem também jogava muito à bola continua a gostar muito de futebol, sendo adepto do Porto. Também brincava sozinho, em casa, imaginando-se maestro de uma grande orquestra.
Saiu cedo de Montalegre, mas voltava muitas vezes nas férias. O pai, funcionário público, foi variando de postos e a família andou a cirandar um pouco por todo o país. Fixaram-se em Gaia e mais tarde em Lisboa. O adolescente Abel Neves que começou a escrever aos 14 anos foi estudar para o Liceu Camões. Desde sempre apaixonado pelos livros, tinha lido A Aparição, de Vergílio Ferreira e comprara nesse ano o romance Nítido Nulo. O autor era então professor no liceu, mas Abel não era seu aluno. Um dia, munido de toda a coragem que conseguiu reunir e com o livro na mão, entrou na sala de aulas onde estava o escritor.
Queria pedir-lhe um autógrafo. “Nunca mais me esqueci do que me disse, olhando alternadamente para mim e para o livro: Quem é que te mandou cá, rapaz?”. “Ninguém”. Gostava muito do autor e só queria uma dedicatória. Ficou algo desiludido quando este apenas assinou o seu nome.
Acabado o liceu, escolheu seguir Filosofia, na Faculdade de Letras. E, quase no fim do curso, desistiu para se dedicar ao teatro. Apresentou um texto (O Elogio do Dia) a João Mota, que não conhecia. O actor e encenador gostou do que leu e apostou no rapaz de 22 anos. “Foi muito estimulante esse tempo na Comuna”, recorda Abel Neves. Nos 12 anos que esteve na companhia, de 1979 a 1991, fez de tudo. Foi actor, fez dramaturgias, ajudou nas luzes, mudou as tábuas do palco. “O teatro é uma casa e quem lá está dentro deve participar em todos os aspectos da vida daquele lugar”, reflecte. Saiu quando se “esgotou” o tempo da sua passagem por ali. Não voltou a trabalhar em exclusivo com nenhuma companhia, embora tenha colaborações regulares com algumas, como o Teatro da Serra de Montemuro, que acompanhou desde o início.
Entretanto deu algumas aulas, foi escrevendo mais peças, entre as quais TouroTerraAmo-te e Jardim Suspenso (pela qual recebeu o Prémio Luso-Brasileiro de Dramaturgia António José da Silva, e que tem estreia marcada para o TNDMII, a 29 de Abril), e saiu o seu primeiro romance Corações Piegas. Seguiram-se outros como SentimentalCentauros imagens são enigmas ou Asas para que vos quero. Este último é o único que tem uma personagem inspirada na vida real. A Dona Maria, de Pitões de Júnias, aldeia ao lado de Montalegre, onde Abel Neves tem um abrigo.
Trata-se de um palheiro, sem luz nem água, onde se sente em casa. No entanto, vive em Lisboa. A natureza está muito presente na sua vida e é para ali que vai para “pousar o espírito “. “Não trocaria Pitões por lugar nenhum do mundo. Remeto-me àquelas águas, ao céu, à vegetação, aos animais e àquela gente que me conforta nos dias que vou levando”, diz.
Sempre que ruma a Norte de transportes ou à boleia de amigos, uma vez que não tem carro Abel vai também para caminhar. Acompanhou muitas vezes o sr. António (pai da Dona Maria) nas suas idas para os montes com a cabritada, as ovelhas e as vacas. Sempre que saíam, o dramaturgo pegava num pauzinho para o acompanhar no trajecto. Certo dia, o sr. António ofereceu-lhe um bordão “muito bonito, cheio de nós”. “Fico com um ar de profeta, de São João Baptista”, conta a rir. E o bordão já tem gerado muitas discussões. Cada vez que entra num café, há alguém que afirma que se trata de um pau de marmeleiro, outros acham que é de escalheiro (pereira brava). Ali se fica um tempo bom, sem fim, a debater a questão. O escalheiro vai à frente.
Neste momento Abel Neves está a trabalhar numa peça Clube dos Pessimistas para o Teatroesfera que tem que entregar até princípio de Março. Depois sairão na Sextante duas das suas novelas, Felizes e Aliança, a que ainda se poderá juntar uma terceira. E já tem alinhavado um romance que interrompeu por causa da peça. “Vale a pena estarmos entusiasmados com aquilo que fazemos”, afirma.
E é desse entusiasmo que sente falta quando se fala, “ou não se fala”, do acto da escrita para teatro em Portugal. “Quase não há crítica, nem divulgação ou edição. Aqui parece que as instituições têm vergonha dos autores que existem”, diz. E não se limita a criticar, tendo mesmo feito planos, orçamentados, de um centro de dramaturgia portuguesa. Todas as instituições a que o propôs (e foram muitas) chumbaram a ideia. “É preciso tornar o teatro vivo, dinamizar encontros, editar os textos.
Não para que se fale deste ou daquele autor, mas das obras que vamos fazendo”, diz. E o dramaturgo não desiste: “Gosto de me saber a trabalhar nessa caminhada”. A jornada será mais fácil se puder ouvir A Canção da Terra, o seu compositor preferido, Mahler.

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